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Filmagens em favelas do Rio viram munição para fake news; atores são alvo de discurso de ódio

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Por Redação em 07/09/2023 às 05:52:40
Mensagens falsas se aproveitam de produções artísticas feitas em comunidades. Bastidores de séries e filmes sobre favelas do Rio viram munição para fake news

"Blitz realizada por facção... Essa eu nunca tinha visto", diz um título de um vídeo que circula nas redes sociais. No vídeo, um homem relata que traficantes armados com fuzis paravam os carros no Rio de Janeiro.

Não era verdade: era a gravação de uma série feita para a internet.

Filmagens como essa, ambientadas em favelas do Rio de Janeiro, têm virado munição para difusão de fake news nas redes sociais. O Fato ou Fake, o serviço de checagens do Grupo Globo, identificou cinco mensagens do tipo — quatro delas neste ano, e uma em 2020.

As mensagens falsas confundem mais ainda porque são disseminadas em meio a situações reais de conflitos entre criminosos e policiais. Há produções em áreas dominadas por facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas.

Embora sem autoria definida, elas ecoam a agenda bolsonarista e de extrema-direita:

criticam Flávio Dino, ministro da Justiça do governo Lula (PT), pelo decreto que restringiu armas;

atacam o STF por ter derrubado decreto de armas editado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, e por ter proibido operação em favelas durante a pandemia.

Para entender o contexto e o impacto desses vazamentos, o g1 entrevistou o CEO e showrunner da Afroreggae Audiovisual, José Junior, o co-idealizador do projeto "Era uma vez favela", Leonardo Turco, e o ator Marcos Anastácio, representante da GRR webséries —um grupo de policiais de websérie que atua em produções diversas em comunidades do Rio.

Em resumo:

Todos tiveram vídeos vazados para as redes sociais de forma descontextualizada, gerando mensagens falsas.

As produções adotam cuidados para avisar às autoridades e à comunidade sobre as gravações.

Eles consideram difícil evitar que os vídeos vazem.

Enfatizam o trabalho social que os filmes e webséries desempenham na inclusão social de minorias marginalizadas: moradores de favelas, negros, comunidade LGBTQIA+ e ex-presos.

Deixam claro que os atores que encarnam policiais e criminosos fazem os personagens em horários de folga, mas geralmente têm uma outra profissão principal.

Identificam preconceito no uso de vídeos vazados em mensagens falsas para atacar essas mesmas minorias.

As mensagens falsas apontam maliciosamente atores como criminosos ou policiais — o que os expõem ao risco de agressão ou difamação.

Todos apontam que as séries —filmadas na maioria das vezes com celular e produzidas com poucos recursos —não tratam apenas de violência nas comunidades, mas mostram o cotidiano dos moradores das favelas e histórias de superação.

O CEO da Afrorreggae, José Junior, afirma que, quando se trabalha fazendo conteúdo que aborda a violência em favela, sempre viralizam cenas que muitas vezes são filmadas por moradores desses locais, mesmo que inicialmente não seja essa a intenção.

"A pessoa que filmou em si não tem nada a ver com a forma que é disseminado. Há deturpações. Às vezes entram vozes narrando que não são das pessoas que filmaram, querendo criar uma situação de desestabilidade", diz.

Atualmente, a Afroreggae Audiovisual tem dez projetos em parceria com o Globoplay. Junior cita como exemplo a série "Arcanjo Renegado", que foi alvo de fake news em suas três temporadas.

"Colocaram as nossas gravações como se fosse o crime organizado, o narcotráfico, colocando o estado de joelhos. Isso não é verdade. Isso não aconteceu", diz.

Já Marcos Anastácio, responsável pela GRR Web Séries, afirma que o grupo ao qual ele faz parte já participou de, pelo menos, nove produções dentro de comunidades. Ele contou que já foi alvo de vários vídeos vazados fora de contexto.

"Na minha equipe tem bombeiro, veterinário e assim por diante. As armas e as fardas não são de verdade. São de airsoft. Nada aqui é de verdade. Armamento não é de verdade. Fardamento não é de verdade, nada", explica.

Idealizador da produção "Era uma vez favela", Leonardo Alves do Carmo, o Leonardo Turco, é evangélico, açougueiro e pai de três filhos. A série é produzida desde julho por ele e por G. Alexandre, da Redenettv.

As gravações são feitas nos horários de folga, e há dezenas de episódios prontos. Ele conta que vídeos de sua produção já vazaram duas ou três vezes.

"Às vezes tem o drone que está passando pela comunidade, filma e fala que é uma suposta invasão de traficantes a uma outra comunidade. Quando um vídeo desse repercute do lado de fora, a gente fica malvisto fora, não dentro."

A RioFilme — empresa vinculada à Secretaria Municipal de Cultura do Rio, afirma que neste ano foram solicitadas e autorizadas 49 diárias para gravações em comunidades até 31 de julho.

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Riscos

Os produtores elencam riscos provocados pela distorção dos vídeos:

"Quando você pega a imagem de algumas pessoas que são atores, que são figurantes, e você coloca como se fossem bandidos, criminosos reais, essa pessoa passa por risco de vida, dependendo da situação", diz José Junior.

Também há desgaste para as instituições. Ele lembra que o ministro da Justiça, Flávio Dino, chegou a fazer um post esclarecendo um vídeo era uma gravação da série Arcanjo Renegado.

Outro problema são os impactos familiares.

"Às vezes atrapalha na nossa parte familiar. Porque até explicar que focinho de porco não é tomada, o familiar te liga e faz aquele terror psicológico. Alguns vizinhos te olham com um outros olhares", diz Leonardo Turco.

Marcos Anastácio, da GRR Web Series, lembra um episódio:

"Uma tia brigou comigo. Chamou minha atenção, porque ela não entendeu a cena que estava circulando. Era um policial que recebe propina de traficantes e tal. E ela me ligou chorando, dizendo 'eu vou puxar tua orelha, você está fazendo besteira'."

Aviso prévio

Os vazamentos distorcidos só não são mais prejudiciais porque polícia, prefeitura, autoridades e comunidade são avisados antes das gravações.

Os produtores ouvidos pelo g1 afirmaram que sempre avisam as autoridades das gravações por meio de documentos, como ofícios. A comunicação também é repassada para a comunidade por meio de faixas, por exemplo.

"A gente explica direitinho o tipo de cena que nós vamos fazer, o tipo de material que nós vamos utilizar para não dar problema. Isso no caso da polícia. Nós avisamos que nós vamos gravar no local tal, nós vamos usar fardamento camuflado, mas são todos atores para ninguém se assustar", explica Marcos Anastácio.

"E a rapaziada lá da quebrada também, de alguma forma, é avisado para eles que nós vamos fazer uma gravação no local, nós vamos usar fardamento camuflado, mas nós somos todos atores. Então, nunca tivemos problemas com eles em função disso", conta.

Preconceito

José Junior mostra um levantamento que aponta que a terceira temporada de Arcanjo Renegado envolve um elenco de 14 favelas, com 71% de pessoas pretas e pardas.

Ao todo, são 111 atores e atrizes moradores de favelas e comunidades, policiais e egressos do sistema penal e 23% de comunidade LGBT, além de atores de várias gerações, com idades entre 18 e 70 anos.

O que as câmeras mostram atrai o preconceito de grupos de extrema direita, afirma.

"Como nossas séries, filmes e webséries utilizam boa parte de pessoas negras, com traços nordestinos, infelizmente, acaba virando natural que a extrema-direita ataque, porque boa parte deles [da extrema direita] são racistas, homofóbicos, transfóbicos..." , diz.

Já Leonardo Turco explica que existe uma falsa impressão por parte da população de que as pessoas vivem como reféns dentro da comunidade.

"Aqui é uma área tranquila. O Chapadão é tido como uma das áreas mais perigosas, mas nós que moramos aqui dentro sabemos que não é nada disso. Decidimos através da arte mostrar para o povo como é a comunidade no dia a dia", conta.

Para Marcos Anastácio, uma pequena parte das pessoas usa o preconceito contra as cenas gravadas na comunidade até entender, de fato, o que se passa dentro desses locais. No entanto, segundo ele, o vazamento de algumas cenas causa alvoroço na internet.

"Muitas vezes a gente está gravando, e o morador da comunidade, por não tá acostumado com aquilo ali, pega o celularzinho, grava e joga na rede social. Aquele rapaz que tá fazendo um papel de bandido, no caso, passa como a pior espécie, né?", diz.

Temas sociais

Temas sociais, que abordam a diversidade, contam histórias de superação e fazem críticas à desigualdade também fazem parte das obras geradas em favelas —embora não sejam os alvos das fake news.

"Não é só a mensagem destrutiva, não é só a violência pela violência", diz José Junior.

Ele relembra uma cena que viralizou da terceira temporada de "Arcanjo Renegado". Ele conta que um amigo, que é político, ouviu em uma conversa com políticos que a série era ruim, já que "macula a imagem do Rio".

"E aí ele virou e falou assim: 'Ah, mas o Tom Cruise agora no 'Missão Impossível' destruiu Roma e ninguém na Itália tá dizendo que maculou a imagem da cidade'", conta.

"Acho que quando você trabalha com temas sociais, quando você trabalha com um público que é majoritariamente negro, nordestino, a carga de preconceito sempre é maior", diz.

Leonardo Turco dá uma sinopse de sua websérie. A produção irá contar a história de uma criança que sonha em jogar futebol, mas que perde a vida após ser baleado durante uma operação.

"A gente tira o quê daquilo? Aquele que tem mais vontade de viver é cheio de sonho e, infelizmente, acaba perdendo a sua vida. Porque o dia a dia da comunidade é isso", explica.

No entanto, para Turco, muitas pessoas que vivem em outros bairros não conseguem entender de fato como é a vida na comunidade. "Aqui ninguém é refém, ninguém vive sitiado. Só que existe um respeito dentro da comunidade, entendeu?".

Marcos Anastácio acrescenta que as webséries atraem e mudam vidas. Além disso, a audiência tem respondido bem, com espectadores de fora do Brasil. Segundo ele, muitas pessoas das próprias comunidades têm mostrado interesse em participar das produções.

"São pessoas humildes, que não têm recursos e fazem o negócio acontecer. Tem atores de websérie que eram da vida do crime e largaram o tráfico para gravar. Hoje, têm seu trabalho digno como ator. As webséries estão salvando vidas", diz.

Vídeos de ficção de web series e filmes sobre favelas do Rio viram munição para fake news; atores são alvo de discurso de ódio

Reprodução

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